Home / Notícias / Como educar crianças para respeitar a diversidade religiosa

Como educar crianças para respeitar a diversidade religiosa

Por meio de brincadeiras e diálogo, educadores estimulam os pequenos a resolver conflitos e entender diferenças

Publicado por: Rosano Almeida

Imagine uma comunidade periférica, no Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA), carente de políticas públicas que garantam direitos básicos aos cidadãos, portanto, bastante vulnerável à violências e violações desses direitos. Agora, imagine as crianças, locais e das imediações, brincando juntas: folia, corre-corre, um grito aqui, um empurrão ali… Tudo muito comum em contextos onde as crianças experimentam a vida em comunidade. Foi aí que a equipe do projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos dos direitos observou uma confusão que reflete uma realidade cada dia mais comum – intolerância religiosa.

O preconceito foi o motivador da muvuca. Uma menina trajando indumentárias características do candomblé foi submetida a constrangimentos e violências, ali, entre um jogo e outro – brincadeiras inadequadas e ofensivas. Ananda, de 8 anos, na ocasião, cumpria os preceitos de sua religião. Em certas circunstâncias, a exemplo de quando se está recém-iniciado, o adepto é recomendado a trajar branco, proteger a cabeça, usar fios-de-conta no pescoço, entre outras especificidades, justificadas pelos costumes próprios das tradições religiosas de matrizes africanas. Tradição que se confunde com a memória da própria cidade de Salvador, mas é ainda incompreendida e perseguida por adeptos de doutrinas fundamentalistas que se espalham, pregando preconceito pela cidade mais negra do país (e fora do continente africano), segundo IBGE/2015.

Nesse dia, Ananda, ao se ver mais uma vez acuada, revidou na mesma moeda. Não demorou para que a confusão surgida ali, no grupo de crianças, tomasse maiores proporções e alcançasse as famílias. As mães das crianças envolvidas tomaram, cada uma, o partido de seu filho, de modo que o caso chegou à coordenação do Projeto, que defende a ideia do brincar livre como forma de romper o ciclo de violência. A coordenação, por sua vez, orientou-as que deixassem as situações emergidas no grupo serem resolvidas no próprio grupo, formado por crianças e educadores, que utiliza como ferramenta de mediação as “rodas de conversa”, uma proposta conquistada gradualmente junto a crianças que não tinham o costume de vivenciar espaços de diálogo na resolução de conflitos.

“Quando temos situações conflituosas como essas entre as crianças do Projeto, chega o momento em que sentamos todos em roda, conversamos e debatemos sobre isso”, relata Zé Diego, educador brincante do Estação Subúrbio, sobre a participação das próprias crianças na resolução das brigas. Segundo ele, nem sempre é possível fazer com que todas as tensões sejam amplamente aprofundadas naquele espaço-tempo do brincar, mas garante que essa é uma boa estratégia para construir, coletivamente, “uma forma de relacionamento que seja mais equilibrada e respeitosa”, disse o educador.

Essa forma de mediação tem apresentado bons resultado. De acordo com os depoimentos dados pelas próprias crianças, hoje, elas já conseguem buscar estratégias para resolver os desafios do grupo; conversar por um tempo maior, resolvendo algumas brigas pelo diálogo, além de identificar sentimentos como ansiedade, nervoso e raiva com mais facilidade; usam toques afetuosos, não agressivos e não invasivos, e reconhecem as atitudes que colaboraram para o aumento da violência, como a “ideia” de que não se deve “ficar apanhado”.

Pelo brincar. Não à violência

Pensando o brincar como a linguagem primordial da criança, Ana Marcilio, consultora associada da Avante e coordenadora do Estação Subúrbio explica porque considera essa uma estratégia potente no combate às violências, inclusive racial/religiosa. “Partimos do princípio que o direito ao brincar está atrelado ao art 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante a liberdade de crença”, disse. No caso de violências religiosas, ela observa que “temos acompanhado o crescimento de casos de intolerância a todo momento. Vemos através da mídia uma série de relatos, agressões, invasão a espaços sagrados e mesmo violência física, casos que revelam um problema cujas motivações são raciais”, disse.

Para ela, as violências comunitárias são resultado de conflitos que estão na sociedade, cuja família faz parte, e reverberam na infância, em violências muito maiores”, assevera. O ocorrido com Ananda deflagra um problema tão antigo quanto a colonização do Brasil, deixando marcas, ferindo a existência e o direito de pessoas de religiões africanas em sociedade, independente de faixa etária. Daí a importância de ajudar que as crianças a entender esses conflitos e a participar de sua resolução. 

Racismo e Intolerância Religiosa

A relação entre racismo e religiosidade é antiga. No Brasil, ela tem um alvo bastante seletivo, como apontam os números. O balanço divulgado em junho deste ano pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos indica que, em 2018, os casos notificados dizem respeito a uma variedade de investidas violentas motivadas por intolerância religiosa. Vão desde xingamentos, constrangimentos, à agressão física, invasões a templos religiosos e até mesmo tentativas de homicídio. Fato é que, mais de dois terços desses registros têm como alvo religiões como o candomblé e a umbanda.

Paralelamente, denominações religiosas de orientações cristãs têm ganhado cada vez mais projeção com o fortalecimento de um conservadorismo violento no País. Em vários casos, são elas que respondem pela promoção de discursos que demonizam as religiões afro brasileiras, com base em uma interpretação distorcida e descontextualizada, criando um terreno fértil para conflitos inter-religiosos.

No início de 2019 a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (SEPROMi) informou que o aumento de casos de intolerância religiosa registrada entre 2017 e 2018, atingiu um pico de 124% de aumento, só no estado da Bahia. Se considerados os números correspondentes aos últimos seis anos, o crescimento chega a alarmantes 2.250%. Indicativos, por si só, da gravidade do assunto e de qual parcela mais tem sofrido com tais investidas.

Brasil de Direitos

About rosano

Check Also

Ministério das Comunicações autoriza TV Digital para quatro municípios de Mato Grosso

Foram contemplados Comodoro, Aripuanã, Poxoréo e Água Boa, que passam a contar televisão em alta ...

Deixe uma resposta