Após cancelar aguardado encontro com Kim, Trump se mostra novamente aberto ao diálogo. Mas histórico da relação entre os dois países sugere que tentativa de aproximação está fadada ao fracasso.
O valor de mercado do souvenir despenca: a loja da Casa Branca vende agora a moeda comemorativa das históricas “negociações de paz” por apenas 19,95 em vez de 24,95 dólares. Após o presidente americano, Donald Trump, cancelar nesta quinta-feira (24/05) seu encontro com o líder norte-coreano, Kim Jong-un, tanto o souvenir como a reunião em si se transformaram em objeto de especulação.
Nesta sexta-feira, após receber a notícia de que Pyongyang continua aberta a resolver problemas com Washington “a qualquer momento”, Trump deu sinais de que pode voltar atrás em sua decisão:
“Foi uma declaração muito boa”, disse o presidente americano ao deixar a Casa Branca para fazer um discurso de formatura na Academia Naval dos EUA. “Vamos ver o que acontece, pode até ser que seja no 12 [de junho, data anunciada para a cúpula].”
“Estamos conversando com eles no momento. Eles querem muito que aconteça. Nós gostaríamos que acontecesse”, continuou.
O cancelamento no dia anterior, no entanto, deu ao vice-chanceler da Coreia do Norte, Kim Kye-gwan, a oportunidade de apresentar seu país como um parceiro de negociação pacífico e construtivo. Uma semana atrás, ele mesmo ameaçou romper a reunião.
Ainda não se sabe se as relações de ambos os países, após o degelo dos últimos meses, vivem apenas uma breve frente fria ou uma nova era glacial. Abaixo, um resumo dos eventos até aqui.
Antecedentes
Para entender os eventos recentes, é necessário voltar 16 anos no tempo: em 2002, o então presidente dos EUA, George W. Bush, declarou a Coreia do Norte, juntamente com o Irã e o Iraque, como parte do “eixo do mal”. O governo Bush acusou o ex-governante Kim Jong-il de romper o acordo negociado por Bill Clinton sobre o abandono das armas nucleares norte-coreanas.
A relação entre os dois países ficou ainda pior em 2003, quando o diplomata americano John Bolton, então encarregado da questão norte-coreana, atacou duramente Kim Jong-il durante um discurso em Seul. Para a mídia estatal da Coreia do Norte, Bolton virou “escória” e “sanguessuga”.
Nos anos 2000, Pyongyang finalmente deu novo impulso ao programa nuclear estatal. Em 2006, testou, a princípio, uma bomba nuclear subterrânea. Após a morte de Kim Jong-il em 2011, os negócios de Estado foram assumidos por seu filho Kim Jong-un, de 27 anos.
Por meio de emenda constitucional, ele oficialmente declarou a Coreia do Norte uma potência nuclear e continuou a promover o desenvolvimento de ogivas e mísseis. Ao deixar o cargo de presidente dos Estados Unidos, Barack Obama teria dito a seu sucessor, Trump, que a Coreia do Norte se tornaria o maior problema do próximo governo.
O primeiro ano de Trump
Dentro de pouco tempo, o 45º presidente dos EUA já sentiu as provocações militares: só em abril de 2017, a Coreia do Norte testou três mísseis. Após vários outros lançamentos nos meses seguintes, Trump ameaçou com “fogo e ódio” em agosto, caso a Coreia do Norte ameaçasse os EUA. Kim respondeu com um míssil que lhe permitiu atravessar o espaço aéreo do Japão, aliado dos Estados Unidos.
Por um tempo, parecia que Trump e Kim baixariam cada vez mais o nível retórico. Em setembro, Trump falou à Assembleia Geral da ONU sobre o “pequeno homem-foguete”, ao que Kim respondeu: “Estou certo de que vou domar este ancião doente mental e demente com fogo.” “Em janeiro de 2018, Trump então deixou claro, via Twitter, que tinha um botão nuclear maior e mais poderoso, e que inclusive funcionava.
Degelo para Jogos Olímpicos de Inverno
De repente, a Coreia do Norte pareceu mudar completamente: em janeiro, de forma surpreendente, anunciou sua intenção de participar dos Jogos Olímpicos de Inverno – junto com a rival Coreia do Norte, anfitriã do evento esportivo.
Em 9 de fevereiro, os atletas entraram no Estádio Olímpico em Pyongyang, sob uma bandeira que mostrava os contornos de toda a península coreana. Após as competições, a Coreia do Norte disse aguardar uma “oportunidade adequada” para negociações com Washington.
Apenas alguns dias depois, em 9 de março, uma cena memorável se desenrolou em frente à Casa Branca. O Conselheiro Nacional de Segurança da Coreia do Sul, Chung Eui-yong, apareceu diante da imprensa para anunciar uma proposta de Kim Jong-un: o governante norte-coreano queria se encontrar com o presidente americano. Então, Trump tuitou a mudança na política externa dos EUA: “Encontro está nos planos!”
Planos para cúpula histórica
Enquanto isso, Coreia do Norte e Coreia do Sul deram continuidade à aproximação iniciada em meio ao espírito olímpico. Formalmente, a Guerra da Coreia nunca terminou, havendo desde 1953 apenas uma trégua entre os dois países.
Em 27 de abril, Kim Jong-un e o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, iniciaram a reconciliação entre os dois países em sua primeira reunião oficial de cúpula na cidade fronteiriça de Panmunjom. Eles decidiram acabar com o estado de guerra e gradualmente tornar a península livre de armas nucleares. Kim prometeu fechar o local de testes nucleares Punggye-ri e fez com que a Coreia do Norte ajustasse seus relógios ao horário sul-coreano.
Aparentemente inspirado pelo encontro histórico, Trump sugeriu o mesmo local para o seu encontro com Kim. Situada na fronteira, a “Casa da Paz” seria mais significativa do que realizar a reunião em um terceiro país. No geral, corriam comentários pela Casa Branca de que, no período de março a maio, o presidente cuidou mais do simbolismo e da encenação da cúpula do que do conteúdo concreto das conversações.
Isso ficou a cargo sobretudo dos falcões ao redor de Trump. Seu novo secretário de Estado, Mike Pompeo, viajou à Coreia do Norte em 9 de maio para definir localização, data e outros detalhes da cúpula. No início de abril, ainda em seu antigo posto de chefe da CIA, Pompeo já havia encontrado Kim.
Mal-entendidos se acumulam
Uma expressão importante nos preparativos foi a palavra “desnuclearização”, porque fornece aos diplomatas certa margem de manobra. Para os coreanos, tratava-se de um processo gradual, mas para os americanos, a disposição de Kim de abandonar todo o seu arsenal nuclear era um pré-requisito.
Os exercícios militares de duas semanas que a Coreia do Sul realizou com os EUA a partir de 14 de maio, agendados muito antes dos planos para a cúpula com Trump, foram vistos pela Coreia do Norte como uma provocação. Dois dias depois, o vice-ministro do Exterior, Kim Kye-gwan, ameaçou cancelar o encontro.
Mais estragos foram provocados por John Bolton, apontado por Trump como assessor de segurança nacional. Ele apresentou o “modelo líbio” para a Coreia do Norte: a Líbia encerrou seu programa nuclear em 2004 e mandou os armamentos para fora do país. Em troca, os EUA levantaram suas sanções.
O fim da história, no entanto, pode ter funcionado como uma ameaça para Kim: o então governante líbio, Muammar Kaddafi, foi morto por rebeldes durante a guerra civil em 2011, aparentemente depois que um drone americano o localizou.
A decisão de Trump de sair do acordo nuclear do Irã certamente não tornou a Coreia do Norte menos cética. Apesar de se distanciar do modelo líbio, o vice-presidente americano, Mike Pence, ameaçou em 22 de maio que, se a Coreia do Norte não concordasse com o desarmamento nuclear, a história “terminaria como na Líbia”.
Apenas um tropeço na história?
A Coreia do Norte, por sua vez, manteve a promessa de Kim e aparentemente destruiu, em 24 de maio, o campo de testes de Punggye-ri. Nenhum observador internacional foi admitido, mas sim, pelo menos, um punhado de jornalistas ocidentais.
Apenas algumas horas depois, a Casa Branca publicou uma carta, direcionada a Kim, por meio da qual o presidente Trump cancelava a cúpula. Nela, Trump lamentou a “ódio e na hostilidade aberta demonstrados em seus mais recentes depoimentos [do governo norte-coreano]”.
A cúpula de Cingapura, disse ele, não deve ocorrer em benefício de ambas as partes e em detrimento do mundo. Provavelmente a fim de expressar sua determinação e superioridade militar, Trump continuou: “Você fala sobre sua capacidade nuclear, mas a nossa é tão maciça e poderosa que eu rezo a Deus que ela nunca precise ser usada.”
Na reaproximação entre Trump e Kim, o eventual fracasso da reunião é um revés que possivelmente só irá se revelar como um tropeço na história. Trump resumiu em uma frase: “Senti que um maravilhoso diálogo se desenvolveu entre nós, e, no fim das contas, só depende de diálogo. Estou ansioso para um dia conhecê-lo.”
Reuters
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